segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Legendarium Entrevista: Thiago Lia Fook Meira Braga - Parte II

Thiago Lia Fook Meira Braga nasceu em Campina Grande. Graduou-se em Direito pela UEPB (2006) e concluiu Mestrado em Ciências Jurídicas pela UFPB (2009). Entre 2008 e 2009, lecionou Filosofia do Direito e História do Direito como professor substituto na UEPB. Em paralelo, dedica-se apaixonadamente à vida literária. Como escritor, publicou um livro (poesia natimorta e versos sobreviventes) pela editora Bagagem em 2010 e vários contos e poemas em sítios e revistas na internet (Sibila, Germina, Blecaute). É membro do Núcleo Literário CAIXA BAIXA (http://caixabaixa.org) e edita um blogue de literatua e filosofia (http://thiagoliafook.blogspot.com). Na segund aparte desta entrevista, continuaremos falando sobre assuntos ligados à filosofia do direito:


03 - A respeito da relação entre direito e moral, assunto bastante discutido em toda a história pelos jusfilósofos, observamos nos últimos meses que ela veio à tona em julgamentos muito importantes no STF, como no caso da Ficha Limpa e a União Homoafetiva. Como deve ser esta relação e quais as consequências que a legitimidade de um ordenamento pode sofrer quase ela exista de forma inadequada ou até mesmo não exista?

Bom, em primeiro lugar, é preciso dizer que esse tema – como, aliás, qualquer outro – exige que se tenha em mente a precisão dos conceitos e das perspectivas. Por que digo isso? Vejam bem. Se pensamos nas relações entre o direito e a moral a partir da perspectiva de Kant, por exemplo, as tensões referidas correspondem a um problema que, na verdade, não se põe na ordem pública; afinal, o domínio da moral em Kant é a consciência individual e do direito, a lei positiva. Então, se a lei comanda algo que a consciência moral, como expressão da razão prática, reprova, é o indivíduo, e não o direito, que terá um problema: a ação livre será a ação conforme a lei externa ou a interna? Isso nos leva ao divã do psicanalista, não ao Legislativo nem ao Judiciário. Em que caso temos um problema de ordem pública? Se pensamos na moral como o fez Durkheim, por exemplo: a moral como um conjunto de regras de conduta que as pessoas reconhecem como tais e cuja origem atribuem a um poder supraindividual que não lhes parece ser delimitável no tempo e no espaço. Aqui, sim, temos um problema de ordem pública, caso o comando jurídico e o moral sejam divergentes. Vamos usar seus dois exemplos para ilustrar minha explanação. O caso da assim chamada Lei da Ficha Limpa é exemplar de como direito e moral convergem e não geram qualquer tensão: qualquer um de nós reconhece o comando “seja honesto” como uma regra de conduta e a desonestidade como um erro; as alterações legislativas em questão apenas reforçaram, no campo do direito, essa regra. Os problemas havidos estavam relacionados às técnicas de aplicação da lei no tempo. Já o caso da união homoafetiva é exemplar de como direito e moral podem entrar em atrito ou, mais que isso, como a própria moral pode cindir-se em comandos conflitantes. Ora, aqui, há um grupo de pessoas que reconhece como norma de conduta o comando “relacione-se sexualmente e una-se conjugalmente com alguém desde que seja do sexo oposto ao seu”, mas também existe um grupo de pessoas que reconhece como norma de conduta o comando “relacione-se sexualmente e una-se conjugalmente com alguém que você deseje, independentemente do seu sexo”. Neste caso, há normas de conduta divergentes que reivindicam o mesmo status de moralidade e terminam produzindo tensão na esfera jurídica. Ora, esse problema, como todos os outros que surgem na ordem pública, resolve-se da seguinte maneira: quando se chaga ao momento da decisão, esta é o produto das vontades de todos os atores envolvidos no processo decisório, que tenham força suficiente para interferir nele.

04 - Em meio a tantas crises institucionais, o modelo representativo é bastante questionado por alguns teóricos do direito. Que papel assume o conceito de legitimidade neste panorama? Tal reflexão nos direciona para uma democracia deliberativa como única solução para solucionar este problema, ou há outras alternativas para a crise de representatividade no universo teórico jurídico-político?

Minha compreensão de democracia está profundamente ligada à análise que faço do poder enquanto fenômeno presente entre as espécies de animais que vivem em sociedade e, graças à evolução do seu sistema nervoso, desenvolvem habilidades intelectuais e mecanismos sociais sofisticados. Se lermos os relatos de primatólogos sobre bandos de chimpanzés, veremos como nossos primos evolutivos organizam-se em agrupamentos fortemente hierárquicas, dentro dos quais a vida de cada membro ou mesmo de intrusos é afetada pelo poder do líder. O que determina o poder dentro desses grupos? Quem o detém e por que meios? Isso é o resultado do equilíbrio entre a força muscular dos machos do bando: o mais forte lidera em face da expectativa dos demais de serem destroçados por ele caso se oponham ao seu controle. Entre nós, seres humanos, verifica-se a mesma tendência do poder a organizar-se como conformação das forças relativas de uma sociedade e de suas respectivas expectativas em relação aos demais. Ocorre que a essa tendência soma-se nossa sofisticação cerebral, que nos permitiu criar a civilização e, com ela, as idéias e as instituições. Assim, quanto mais desenvolvida e especializada uma sociedade, menos as forças que disputam o poder serão físicas e mais serão políticas, econômicas e culturais. Nesse sentido, o que é a democracia? É o regime de poder que surge nas sociedades modernas quando os grupos em condições de influenciar direta ou indiretamente o comando são tantos e tão diversificados que todos eles precisam entrar em acordo e permitir reciprocamente a possibilidade de controlar o poder. Para tanto, é necessário consultar a população sobre quem deve exercer o poder e é preciso fazer isso continuamente, para que a ascensão ao poder não seja feita por meio da eliminação física do adversário ou da revolução. Aqui, então, temos a democracia. Colocada assim a questão, vemos que o sonho de uma democracia deliberativa plena é precisamente isto: um sonho. Para que ela exista, é preciso que todos estejam em condições tanto de argumentar ao longo do processo decisório político quanto de submeter suas posições à alteração pela força do melhor argumento; mas isto seria o caos, além de só ser aplicável a uma sociedade imaginária onde as pessoas sejam pura e igualmente altruístas e engajadas na coisa pública. Isso quer dizer que não há espaço para a participação racional de cidadãos esclarecidos? De forma alguma. A democracia representativa é o modelo mais adequado para nossas sociedades e, se pensarmos bem, ela comporta a presença de espaços e instrumentos de deliberação, sem que isto implique sua própria superação. Afinal, a democracia se fez desde o princípio não só com eleição e parlamento, mas também com imprensa livre e opinião pública, que são grandes espaços deliberativos. Então, talvez seja necessário pensar no acesso a esses instrumentos por parte de grupos sociais cujos interesses não são ouvidos, mas para isto a própria democracia representativa oferece também uma resposta: qualquer interesse pode ser ouvido desde que encontre um líder capaz de representá-lo eficazmente.

05 - Por fim, gostaríamos que o nos falasse sobre a área que mais gosta de atuar, e também a respeito das pesquisas que vem desenvolvendo em seu mestrado. Também desejamos que deixe uma palavra para os estudantes de direito, e que nos fale sobre a importância da reflexão filosófica que deve existir no campo jurídico.

Concluí o Mestrado em 2009, na UFPB. Quando ingressei, dois anos antes, era recém-graduado pela UEPB e fazia alguns estudos na área trabalhista. Então, lia em todos os livros referências ao contrato coletivo de trabalho como um instituto a respeito do qual não se sabia muita coisa e cheguei à conclusão de que se tratava de um objeto de pesquisa. Tentei ingresso na pós-graduação da UFPE, mas fui reprovado na fase oral porque a banca considerou meu tema inviável. Enfim, encontrei acolhida em João Pessoa, com a Professora Doutora Maria Áurea Cecato, que apostou na minha causa. Na verdade, como afirmei acima, procurei compreender meu objeto a partir de uma perspectiva histórica e minha pesquisa chegou ao seguinte resultado: o contrato coletivo de trabalho conseguiu validade, mas nunca se tornou eficaz, porque ele era o símbolo de uma causa – a luta pela liberdade sindical – e, como esta foi conquistada em 1988, a bandeira do contrato foi esvaziada; além disso, havia problemas relativos à disputa de poder entre as entidades sindicais e à abertura econômica no princípio dos anos 90, os quais colaboraram para incluir o contrato coletivo na pauta e, curiosamente, torná-lo impraticável. Por outro lado, tive a oportunidade de lecionar Filosofia do Direito e História do Direito na UEPB, como professor substituto, entre 2008 e 2009. Desde então, alterei o rumo das minhas leituras e reflexões, de maneira que agora me preparo para tentar ingresso no Doutorado em Filosofia da UFPB, enquanto me dedico a uma paixão muito forte e cada vez mais presente em minha vida: a atividade literária. Enfim, quanto à necessidade do estudo da filosofia, ela me parece evidente, já que não se pode compreender adequadamente um objeto se não se apreende aquilo em que ele consiste. É precisamente essa a função da filosofia: indagar sobre o que a cosia é, investigar seus pressupostos. Quando cursei Direito, as pessoas estavam tão inebriadas pelo X dos concursos públicos, que tocar nesses assuntos era uma heresia. Já os alunos com quem trabalhei na condição de professor, embora igualmente voltados para os concursos, mostraram-se mais abertura para lidar com essas questões. Espero que isso seja sinal de tempos mais favoráveis à Filosofia entre os novos juristas.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Hostgator Discount Code